Revivo três pesadelos que tive quando era criança. Nunca mais ocorreram-me, mas ainda assim, estão gravados na minha mente. Num deles, estou correndo pela floresta e uma brigada de terroristas persegue-me. Estou correndo para salvar a minha vida e tento subir por uma colina enquanto eles se vão aproximando. E então eu acordo.
No sábado, esse pesadelo ganhou vida com plena força.
Eu era um vendedor de uma food truck naquela maldita festa no Sul, sexta à noite. Por volta das 3 da manhã havia muito trabalho e uma senhora de cabelos curtos e grisalhos chegou ao food truck, de bengala na mão e com roupas de uma profetisa da Idade Média. Deixou um bilhete na minha mão e continuou andando. Não entendi bem a razão, mas fiquei curioso e olhei para o bilhete no qual estava escrito o seguinte: “Ninguém sai vivo desta vida. Usa o que tens. Da velha do bilhete e da bengala”. Perguntei-me: “O que é que ela quer de mim, a senhora dos bilhetes perturbadores?”. Amassei o bilhete e continuei a trabalhar.
“Mas isto não pára. Só piora. Rocket atrás de rocket, explosão atrás de explosão”
Sábado, seis da manhã. Acordo o meu companheiro, Doron, e digo-lhe que é hora de trocar, que vou dormir. Por volta das 06h15 deitei-me no colchão.
Às 06h30 o nosso chef, Lotan, acorda-me: “Levanta! Levanta! Estão a disparar rockets! Há uma sirene de alerta vermelha!”.
Eu salto da cama e olho para o nascer do Sol através de um cobertor colorido. O céu inteiro está repleto de rockets e explosões de intercepção... Parte da multidão está em choque enquanto que a restante permanece no lugar, observando com espanto este espetáculo surrealista.
Durante os primeiros minutos pensei que isto fosse apenas mais uma provocação das bestas humanas que residem na nossa fronteira, que acabaria e depois arrumaríamos tudo e iríamos embora.
Mas isto não pára. Só piora. Rocket atrás de rocket, explosão atrás de explosão.
Digo ao Doron que está esquentando aqui: “Vamos arrumar tudo e partir”. Começamos a arrumar tudo durante os disparos e então o Doron avisa-me que vai trazer o seu carro. O Lotan e eu continuamos a empacotar tudo, quando de repente ouço uma rajada de tiros de uma metralhadora vindo de dentro da floresta.
A festa é bem perto da fronteira e pensei que vinha de lá. Mal passam dois minutos, um SUV da produção sai rapidamente da floresta; dois seguranças com uma jovem entre eles com a cabeça e o rosto cobertos de sangue gritando: “Eles atingiram a minha cabeça! Socorro! Há terroristas aqui! Mataram todos os meus amigos!”.
A Magen David Adom [MDA - EMT israelense e serviço de ambulância de emergência paramédica] e os seguranças que lá estavam não sabiam bem o que fazer com ela e, devido à natureza da festa, perguntaram se ela tinha a certeza de que não havia tomado algo e estivesse a alucinar: "Talvez tenha entrado em pânico e deixado isso afectar a sua cabeça?". Ela grita novamente para eles: “Não estou alucinando nada! Há imensos terroristas aqui! Salvem-me!”. E tudo isto enquanto a festa é duramente marcada por disparos.
Nesse momento, apercebi-me de que algo maior estava acontecendo. Liguei para o Doron e disse-lhe para ir-se embora, que havia terroristas ali. Vejo apenas o meu filho, Tevel, diante dos meus olhos e digo ao Doron que vou sair daqui agora. “Sai tu também!” disse-lhe eu . Ele insiste - por força do seu grande coração - em ir buscar a food truck, já que lhe havia sido emprestada por um caro amigo nosso. “Que se foda o equipamento! Sai daqui!”.
“(...) pelo caminho vimos carros perfurados, corpos largados - cenas que nunca esquecerei.”
O Lotan e eu estamos num veículo 4x4. Contornamos um pequeno engarrafamento no terreno e depois paramos num enorme engarrafamento na estrada, com um carro da polícia bloqueando o centro da via, e policiais com as armas em punho, que não têm ideia do que está acontecendo ou para onde ir. Ninguém sabe o que está acontecendo.
Então, outra garota surge do campo, aponta na direção do engarrafamento e grita para os policiais, informando-os de que estão ali terroristas e que estes estão assassinando todos os ocupantes dos carros que se encontram no engarrafamento.
Toda a gente começa a entrar em pânico e os policiais mandam-nos ir embora ou caminhar pelo campo aberto em direção a Leste, o campo que você vê nos vídeos, com todos correndo, como alvos fáceis.
Entro no carro, coloco a chave na ignição, enquanto planejo logo como contornar o engarrafamento do campo para chegar rapidamente ao topo do morro e afastar-se desse pesadelo. Viro a chave e o carro não pega. Não é um sinal encorajador perante a situação em que me encontro. Mas rapidamente recuperei os meus sentidos. Saímos do carro e começámos a fugir a pé.
Caminhamos o mais rápido que podemos e de longe ouvimos rajadas de tiros e gritos de terror, vindos de todas as direções.
Um carro pára ao nosso lado e oferece-nos uma carona. Estamos parados num engarrafamento no campo, avançando lentamente e eu mais tenso que uma mola. Ligo para o Doron e imploro para que ele saia daqui, [dizendo-lhe] que isto é um verdadeiro ataque terrorista. Neste instante, ele diz-me que o exército não está deixando ninguém sair da área da festa, pois está cercada por terroristas e a ligação é cortada.
Então olho para os carros no topo da colina e apercebo-me de que eles estão começando a fazer uma curva de inversão, mas não uma curva do tipo: “Opa…Fui para o lado errado.” - uma curva à Chuck Norris. 40 carros, todos ao mesmo tempo num caos. Aí digo ao motorista que nos levou, para que retorne também, que eles não estão virando sem motivo, que alguma coisa está acontecendo ali. Ele é teimoso e não quer voltar atrás, mas quando se apercebe que todos estão virando, também começa a fazê-lo.
Algum poder divino estava cuidando de mim quando o meu carro ficou preso porque eu tinha planejado contornar todo o engarrafamento pelos campos em torno da colina.
Voltamos para o engarrafamento com os policiais e aí começam as rajadas mesmo perto da gente e os gritos. As pessoas começam a conduzir e a correr em todas as direções, e eu digo a ele: “Sai daqui! Sai! Não importa para onde! Arranca a todo o gás!”.
Ele ficou bravo porque lhe dissemos o que fazer e decidiu ficar onde estava. Ele disse: “Se for para morrer, eu morrerei”. Espero que ele esteja vivo.
Saí do carro assim que ele terminou a frase e comecei a correr pelo campo, mas perto das árvores para poder rolar e esconder-me se for preciso - assim como muitos outros fizeram. Estou correndo como toda a gente e as rajadas de tiros estão se aproximando…
Já estou há três dias sem dormir. No dia anterior houve outra festa no mesmo local em que também trabalhámos.
Estou correndo para salvar minha vida e ouço balas assobiando perto da minha cabeça, manchas de sujidade nas minhas pernas…Imaginem um anúncio comercial exagerado da Yes [um serviço de cabo israelense] e multipliquem-no por mil.
Com o choque, as minhas pernas congelam, como se fosse isso. “Não estamos mais trabalhando para você”. E digo a mim mesmo: “Apenas caia. Como se você estivesse morto. Ou corra para a floresta e se esconda”.
E então, emerge novamente diante dos meus olhos uma imagem do meu filho. Nesse mesmo momento, passa um anjo com um pequeno Skoda que não andava muito rápido. Abri a porta traseira, entrei e sentei-me. Depois disso, três meninas também se juntaram. Éramos então 9 pessoas dentro de um carro pequeno. Ele pisou no acelerador e pelo caminho vimos carros perfurados, corpos largados - cenas que nunca esquecerei.
"E nós, os sobreviventes, carregamos ferimentos."
Conseguimos chegar à estrada em segurança, ainda sem acreditar que sobrevivemos àquele inferno. Não sabíamos se as barricadas que estavam montadas no caminho conteriam terroristas ou soldados.
Não consigo entrar em contato com o Doron. O telefone dele está indisponível. As mensagens do WhatsApp contêm uma marca de seleção [indicando que quem recebe as mensagens não as está recebendo].
O motorista deixou-me num posto de gasolina perto de Ashdod, onde vieram buscar-me para voltar para casa.
Entrei e abracei o Tevel com toda a força do mundo. Desmanchei-me em lágrimas como um homem que sabe que esta dádiva da vida lhe foi concedida novamente hoje. Usei o que tinha - exatamente como estava escrito no bilhete da velha senhora com um pedaço de pau. Abracei o Hanni e ele e não consegui parar.
Enquanto escrevo isto, caem lágrima na tela.
Vejo no meu feed do Facebook todas as pessoas lindas, a alegria da vida - este está desaparecido, aquele foi sequestrado, ela foi assassinada, ele está ferido - e os obituários, como um Dia da Memória sem fim.
E nós, que sobrevivemos, mas carregamos as feridas.
Alimentei metade de vocês na noite anterior. Não fui apanhado.
Aos terroristas vis e malditos, monstros que não merecem uma grama de oxigénio que estão desperdiçando aqui, às pessoas sedentas de sangue que massacraram famílias inteiras e soldados, que torturaram e sequestraram bebés e idosos, que massacraram as nossas flores na floresta apenas por serem judias, tal como nos momentos mais sombrios da história, e também a todos aqueles que apoiam essas ações, estou lhes dizendo isto: “Vocês não conseguiram capturar-me num pesadelo quando tinha dez anos e não o conseguiram também no Sábado.
A nação judaica é uma fonte de luz num oceano de trevas e vocês nunca conseguirão apagá-la.”
*Escrevi tudo isto há dois dias [23/10/09], quando ainda rezávamos para que o Doron sobrevivesse ao massacre. Mas ontem [23.10.23] fomos notificados de que aqueles monstros assassinaram-no e o meu coração está completamente destroçado.
“Doron Boldas, amigo, chef, um grande vazio no coração. Você que parecia um viking, mas nunca machucaria a ponta da asa de uma mosca, o seu coração é puro, o seu riso e a sua vontade de dar. E as nossas conversas. Meu Deus! Acabámos de dormir juntos fora por três dias, trabalhamos juntos, rimos, divertimos-nos. Não tenho ar.
Que D’us vingue o seu sangue.
Envio as minhas mais profundas condolências às famílias que perderam os seus entes queridos, uma rápida recuperação aos feridos, e que todos os desaparecidos sejam encontrados vivos e os raptados possam regressar a casa o mais rapidamente possível.
Porque esta ferida tem de começar a sarar.
Quero agradecer a todos pelos vossos comentários emocionantes. Vocês são incríveis e, apesar de todos os nossos disparates, tenho orgulho de fazer parte desta nação.
** Este texto foi escrito há dois dias, mas com o passar do tempo tenho cada vez mais insights a respeito do inferno que ali se gerou.
Eles começaram um bombardeamento com rockets que não parou por duas horas com um enfoque no parque de estacionamento de Re’im. Explosões incessantes acima das nossas cabeças que fizeram o chão tremer.
No meio de todas as falhas militares que conduziram a esta situação, houve algo que funcionou impecavelmente, como sempre: A Cúpula de Ferro.
Se os morteiros tivessem atingido o campo, teríamos ouvido falar de 1.000 mortos só na festa. Estávamos num campo aberto que costuma ser atingido e nem me lembro de nenhum estilhaço.
Não sei mais o que pensar.
Izik B.