Na sexta-feira, fui trabalhar na Nova como gerente de equipe, estava feliz e animada. Ilkin Asaf veio buscar-me com Dushi Kuki e Âmbar. Estávamos indo para a festa e felizes por finalmente chegar a hora esperada, relaxar e afastar as toxinas do dia a dia. Chegamos à festa, abrimos uma cerveja - as energias estavam muito estranhas. Dushi Kuki e eu sentamo-nos com uma cerveja e não conseguimos expressar nossos sentimentos.
Por volta das 6 da manhã, Yarin (Artifex) subiu para tocar ao amanhecer (além de ser um talentoso produtor,também é um querido amigo) e fomos para a pista de dança. Dançamos um pouco. No exato momento em que começamos a nos divertir, a música foi interrompida. Anunciaram no alto-falante que havia uma infiltração de terroristas na área e precisamos fugir para salvar nossas vidas. Mísseis e intercepções voam no céu, como em uma cena de filme. A polícia disse-nos para entrarmos nos carros e sair - mas nossa lógica diz-nos que se 4000 pessoas tentassem sair ao mesmo tempo, ninguém sairia. A lógica venceu e ficamos ali, no mesmo local. Dushi leu-nos “Shemá Israel “(oração judaica) e simplesmente rezamos para que aquilo terminasse logo. Mas,na verdade,estava apenas a começar.
Durante o momento em que descemos do carro e começamos a correr, encontramos uma bateria de terroristas, infiltrados a pé e com armas de todos os tipos. Chegou a hora de correr e rezar com força,muita força.. Então, caiu a ficha de que se alguém sobrevivesse seria um milagre, e, tudo estava daqui em diante nas mãos do destino.
"Ao nosso redor, ouvimos gritos de "Allahu Akbar" e outras “pérolas de sabedoria”, e o coração só reza para que alguém pare o caos."
Corremos por cerca de uns quinze minutos sob fogo intenso, um rapaz empurrou-me para dentro de um contentor , onde nos escondemos - eu e mais umas 10 pessoas - por 3 horas. Ao nosso redor, ouvimos gritos de "Allahu Akbar" e outras “pérolas de sabedoria”, e o coração só reza para que alguém pare o caos. Onde está o exército? A polícia? Alguém? Alguma coisa? Mísseis voam sobre nossas cabeças, a polícia não responde nem outras forças militares, multidões de pessoas feridas gritando de todos os lados, balas assobiando, carros explodindo, e inúmeros terroristas fanáticos ao nosso redor com armas e chinelos (alguns até mesmo descalços) pulando, gritando e atirando. Eles vieram para celebrar a minha Nova.
Após cerca de 3 horas escondidos no contentor sob o sol, suada e com nossa própria urina por toda parte percebemos que um terrorista estava muito próximo.. Pedi a uma das jovens que está deitada para ficar quieta para que ele não entrasse e nos machucasse.
Disse que precisava mudar de posição e mexeu--se . O plástico que estava nas pilhas de lixo embaixo de nós estalou. E, em menos de uma fracção de segundo, o terrorista já estava dentro do contentor , pulverizou-nos e saiu gritando "Alá Akbar".
Dois rapazes bonitos e legais foram atingidos na cabeça e caíram diante dos nossos olhos.Outras jovens foram atingidas em diversas partes do corpo, e eu levei dois tiros, um em cada virilha, outro no ombro, que mais tarde descobri que atingiu a sola do sapato de Noam e, assim, salvei a perna dele. Liguei para a minha mãe, disse que a amo, mas que desta vez não sobrevivo.
"Gritos, suor, sangue, lixo e outros órgãos, que realmente perdem significado quando você está tão vazio."
Gritos, suor, sangue, lixo e outros órgãos, que realmente perdem significado quando você está tão vazio. Começa então a corrida contra o tempo com uma espécie de anjos que cuidaram de mim na minha volta da da morte para a vida. Rom Barlev,que trabalhava como segurança no evento, veio até mim com Yagil (produtor e chefe de segurança)até à abertura do contentor.Disseram-me que precisava rastejar até a saída do contentor para ser evacuada, pois estávamos sob fogo. Depois de mais de meia hora me esforçando sob os sacos de lixo ao sol, perdendo uma quantidade enorme de sangue, percebendo que precisava usar minhas últimas forças e rastejar entre os cadáveres até Yagil e Rom. Cheguei até eles. Rom (que já estava baleado nas duas mãos) arrastou-me sorrindo na sua direção e disse: "Não se preocupe, eu estou cuidando de você."
"Entre tiros e mísseis, ele resgata pessoas,com ambas as mãos baleadas, ocupa-se em resgatar pessoas. Rom esteve ausente, mais ou menos, desde a hora em que me resgatou. Rezo para que esteja vivo, bem e tenha sobrevivido a esses horrores com o seu sorriso gigante. Na unidade, os militares não tinham material médico suficiente.Fizeram-me um torniquete ( "ח״ע" )só na perna esquerda,escreveram na minha testa o horário “12H00” com batom.A mim só me restava rezar para que, contra as leis da natureza, todos os meus membros permaneçam comigo.
Um carro de polícia evacuou-me sob fogo e tiros de todos os lados, enquanto estava dobrada e a sangrar no banco de trás, e o policial a proteger com seu corpo para que não fosse atingido pelos tiros. Chegamos à primeira ambulância, o paramédico em choque, sem doses de sangue, sem analgésicos. Quando a equipe percebeu que não tinham o que eu precisava, foi decidido transferir-me para outra ambulância da United Hatzalah(Unidade de Resgate) sob fogo cerrado. Fui recebida por Noam, Na'ama e Yaira com nobreza emocional e calma, apesar de perceberem que eu estava literalmente a um passo da morte.
Estava confusa e já tinha dificuldade para falar. Yaira também estava sem analgésicos, então imediatamente parou outra ambulância, que através da janela, nos entregou uma ampola de cetamina que simplesmente mudou todo o quadro.. Yaira a injetou em meu ombro, e, 30 segundos depois, o corpo continua baleado e minha mente? De férias no Havaí.
Não sentia nenhuma sensação, nenhuma compreensão ou pensamento de que eu realmente pudesse sair daquele pesadelo. Flutuando sobre a situação e realmente sem entender. Por que estou aqui? Por que o terrorista atirou em mim? Porque os dois estamos nesta situação? Meus amigos estão seguros? Onde estão? E mais mil perguntas se estou feliz com a vida que vivi até agora. Porque hoje ela estava acabando.
Há algo que mudaria? Alguém que amo e não lho disse ? Não acreditava que era possível ter tantos pensamentos ao mesmo tempo,no segundo que estava vendo a morte tão de perto.
Depois de flutuar sem parar na ambulância e sofrer outra perda muito, muito grande de sangue, cheguei ao Assuta Ashdod(hospital),atordoada, sem consciência e sem sangue ou veias ( abriram uma artéria principal no pescoço) e começaram a administrar-me transfusões de sangue. A partir daqui a história já é contada pelos médicos, pois eu não estava consciente. Apenas meu corpo baleado estava na mesa cirúrgica com alguns anjos que haviam decidido salvar -me a vida. Dois dias depois, que pareceram um mês, acordei respirando em um hospital, mexendo a perna direita, mexendo a perna esquerda. Vendo meus dois pais emocionados com o milagre que lhes aconteceu, percebi que, afinal, não amputaram a minha perna esquerda e agradeci a Deus profundamente por finalmente estar em um lugar seguro e por estar viva.
Nessa altura, já tinha sido informada que o nosso querido Ilkin tinha sido assassinado. Dushi e Eden escaparam ilesos, e a minha Âmbar, minha amiga, tinha sido sequestrada inconsciente e levada para Gaza pelo Hamas. Meu cérebro ainda não conseguia assimilar a gravidade da situação.
Após uma guerra de sobrevivência de quase um dia, estava desidratada e fraca, aguardava em jejum total o próximo procedimento cirúrgico, exausta e recebendo em abundância transfusões de sangue.
De repente, outra anjinha chegou - Adi. Ela molhou-me a boca com água para evitar a desidratação e ensinou-me gradualmente a respirar sem o auxílio do respirador. Até conseguir acordar completamente, já estava a caminho de outra cirurgia com o Dr. Tofaz, um cirurgião plástico que desenvolveu uma técnica única de cura para ferimentos à bala, incluindo a implantação de estruturas plásticas, ferros, suturas e a administração direta de antibióticos em feridas sob esponjas volumosas em todas as partes do corpo onde fui ferida.
Acordava confusa e com dores incessantes na manhã seguinte à cirurgia, percebendo que agora começava a verdadeira batalha para me pôr de pé.Tento agora dormir por mais de uma hora seguida sem sonhar com um dos meus amigos que já não está entre os vivos .Sobre o terrorista de Gaza que atirou três balas sobre mim , ou sobre os carros que explodiram diante de nós, ou sobre os membros dos meus amigos que voaram na minha cara quando estavam sendo assassinados no contentor do lixo, ou sobre como é sentir a iminência da morte.
Os pensamentos não paravam e não vão parar tão cedo. Nem para mim nem para as outras pessoas que o experimentaram comigo, ou mesmo para aqueles que o vivenciaram de casa e perderam imensas pessoas queridas. No momento, estou em um estado de gratidão sem fim por estar viva, e que alguns dos meus amigos também tenham sobrevivido (infelizmente, não muitos). Pessoas e rabinos vieram tocar-me em busca de sorte,transformando-me de uma jovem inocente de 25 anos de Haifa, a uma vítima de guerra que, na verdade, é um milagre clínico , e as pessoas tentam se aproximar de mim para obter parte da sorte que eu tive e tenho.
Vou começar agradecendo ao Ben Otmi, que me recebeu na sala de trauma e ficou ao meu lado durante todo o período de internamento, garantindo que tivesse mimos e tudo mais que tornasse a estadia mais agradável. Você é meu anjo.
Agradeço aos milhares de voluntários que percorreram minha ala para distribuir comida, bebida quente, xampus e outros presentes. Aos maravilhosos “Eretz Nehederet “(programa cómico da TV israelita )e ao mágico Dudo Tsa,(músico) que vieram alegrar os meus dias mais sombrios. A toda a equipe do departamento ortopédico do Assusta Ashdod que cuidou de mim com coragem e amor.. Ao rabino chefe do hospital, que nunca parou de lembrar-me o quanto sou um milagre visível e que recebi uma nova vida. A Kinneret, chefe das relações do departamento ortopédico, que uma segunda mãe para mim durante a semana. Quanto amor tenho por você.
Aos meus pais que passaram por essa jornada louca comigo, dias e noites sem dormir e preocupações sem fim . Aos meus amigos que, de todos os cantos do mundo, ligaram, perguntaram sobre mim e vieram visitar-me no hospital para alegrar meu dia. À tribo Nova que, apesar de sofrer muitas vítimas, soube lidar de maneira madura e responsável durante todo o desastre que passamos, visitando-me e ligando o dia todo para se certificar de que estava bem, além de enviarem presentes durante toda a hospitalização.
Obrigada aos anjos que cuidaram de mim desde o início da jornada até ao seu final.. Sem vocês, eu não estaria aqui hoje.
Terminarei com um pequeno conselho a todos vocês,
O país inteiro está atualmente em pós-trauma. Esta não é uma experiência pela qual alguém (no país) deveria passar. E deve ser tratado logo nos primeiros dias para que não se torne em um dano significativo no futuro.
Uma mente sã- num corpo são, e todos devemos contactar as autoridades relevantes e falar sobre nossas feridas terríveis.Tenho uma lista de dezenas de profissionais incríveis no campo do trauma e psicadélica que estão se voluntariando para conversas gratuitas com quem quiser, e é realmente importante que isso alcance a todos.Também estou disponível para conversar com qualquer pessoa que assim queira, sobre o que passou, o que eu passei, ou apenas sobre o clima. Tente manter seu espaço cheio de pessoas positivas que o vão tirar da situação e não derrubar.. Concentre-se no copo meio cheio (que é até mesmo um quarto) e agradeça pelos entes queridos que sobreviveram.
Obrigada porque o destino me permitiu renascer no dia 7.10.23 e ver quanta força existe em mim e nas pessoas ao meu redor. Nos encontraremos no aniversário!
Naama G.